Algumas considerações sobre o ser retórico
A retórica não pretende ser muita coisa, tampouco nada. Pretende ser algo. Não lhe preocupa o estatuto da essência, pois não cabe a ela ser ou deixar de ser. Cabe a ela, sobretudo, adjetivar. Por certo, em toda a sua constituição enquanto técnica, a retórica visou qualificar os discursos, os gêneros, os oradores, os auditórios, os argumentos, etc. Seja para determinar o que possa ser útil ou inútil, belo ou feio, justo ou injusto, sempre se apresenta como o que pode definir qualitativamente alguma coisa. O grifo aqui se fez bastante necessário, para remarcar que não cabe a ela denotar o que seja, mas apresentar as possibilidades.   Sim, a retórica é adjetivo, tal como o próprio termo rhetoriké (retórica), adjetivo grego que acompanha o substantivo tekhné (técnica). A tekhné rhetoriké é a própria arte (no sentido de técnica) retórica. Segundo Hansen (2013)[1], no termo retórica encontra-se a raiz indo-europeia -r-,que tem a noção geral de “movimento”, como por exemplo na palavra grega rheo-‘escorro’ e também na palavra latina currere-‘correr’. Tem-se também a raiz grega ik de rhetoriké e por correspondência também no latim ic, como em “dialética”, “gramática”, todas indicando a mesma ideia de técnica. Nesse sentido, não se pode exigir que a retórica seja algo exclusivamente da ordem da essência, mas sim do juízo. Ela é, por assim dizer, a arte dos juízos. Quando dizemos A: “essa moça é bonita” e B: “essa moça não é tão bonita” não estamos questionando o fato do sujeito referido no enunciado ser moça ou não, substantivos declarados nos dois enunciados, mas sim o fato de essa moça ser bonita ou não tão bonita. As duas possibilidades “ser bonita” e “não ser tão bonita” denotam que a verdade dos enunciados está mais na concepção de beleza dos enunciadores, do que na própria beleza da moça enunciada.  O adjetivo descreve, assim, a própria função da retórica, pois ela apenas qualifica o predicado e os sujeitos, mas nunca determina suas essências, pois é claro, a essência é algo que transcende qualquer juízo preliminar. As teses A e B podem ser ambas “verdadeiras”, porque a verdade, neste caso, é da ordem do “parecer” e não do “ser”, o que constitui o conceito de verossimilhança para a retórica, noção capital para toda a constituição da técnica.

O homem retórico
O homem é um ser retórico e nunca deixou de sê-lo. Independentemente das fases, das filosofias, das ideologias, do tempo, o ser humano sempre se expressa através da linguagem (qualquer que seja ela), a fim de comunicar o que ser quer ao outro, com fins persuasivos, ou não.  Pode-se perceber a retórica (o que ela significa, e não o termo) desde as primeiras trocas linguageiras mais remotas, nas negociações primeiras no decorrer da história, na constituição dos povos, das sociedades. A retórica esteve no estabelecimento dos princípios religiosos, nos dogmas, nos inventos, no conhecimento empírico, esteve na época das “luzes”, também na das trevas, e esteve mesmo nas leis matemáticas. Em tudo isso ela esteve, e ainda está em tudo o que persiste. Porque a retórica existirá enquanto existir o homem, o conhecimento e o outro. A tekhné rhetoriké só deixaria de existir se em um episódio de exterminação de todo o planeta Terra não restasse homem algum, ou restasse apenas um, pois o que é essencial para a existência dessa técnica é a possibilidade de interação entre dois sujeitos falantes (ainda que se possa deliberar com o próprio “eu”[2]). Se admitirmos validade nos dogmas e nas crenças judaicas, podemos já conceber a origem do que viria a ser técnica retórica (não a do termo) ao mergulhar na história hebraica acerca do surgimento do homem e da mulher com Adão e Eva. Podemos entender que a retórica já ali começava, desde o próprio relacionamento entre Deus e Adão, até a criação da mulher Eva, que passou a ser a sua parceira comunicacional. A suficiência do conhecimento do bem sempre esteve devidamente delineada por Deus, que prometeu o bem eterno aos dois, apenas exigindo que ambos não comessem do fruto da árvore que se situava no meio do jardim do Éden. O que aconteceu em sequência? Apareceu uma serpente que os “enganou”, persuadindo Eva a comer do fruto e partilhá-lo com Adão. Ela o persuade, os dois comem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, desobedecem ao próprio Criador, passam a conhecer tanto o bem quanto o mal, além de passarem a ter vergonha da nudez mútua. Deus os condena a uma série de maldições pelo ato infracional. O que nos interessa aqui, sobretudo? A serpente foi retórica, Eva foi retórica, Adão, igualmente, refletiu retoricamente. A retórica é a capacidade de refletir sobre uma série de possibilidades.  É a própria discussão. O que move o pensamento retórico é a “problematologia[3]” dos questionamentos. Somos movidos a perguntar o mundo, porque não temos resposta de tudo, e quando a temos ou achamos que a temos, essa ainda pode ser igualmente questionável. O mundo já viu, por certo, o desmoronar de velhas verdades, e por isso, precisamos nos questionar sempre a razão de todas elas. Além disso, claro, todas as conclusões que passemos a ter em um processo argumentativo vai nos levar a uma ação, ou a uma disposição de ação, que gerará consequências, positivas ou negativas. A retórica é o fundamento da escolha. Não se come um fruto meramente por comer. Come-se sempre porque uma propaganda se foi feita sobre tal fruto, e eu tenho conhecimento sobre o que é aquele fruto, o prazer que ele pode me ocasionar, os benefícios que pode me trazer, além dos malefícios que nele se incluem, mas que posso supostamente suportar em função dos benefícios. No caso, comer o fruto custou ao homem “a queda[4]”, porém certamente iniciou a capacidade retórica humana, através do conhecimento do bem e do mal, de o homem se instituir enquanto ser racional e deliberativo.   
Destarte, reafirma-se, a retórica é um adjetivo, uma técnica, onde se pressupõe a possibilidade de “movimento” das ideias, dos argumentos e dos juízos, impossibilitando uma concepção sólida de certo/errado, bem/mal e demais dicotomias. Ademais, viu-se que a retórica é escolha, é o fruto do conhecimento, é a pluralidade de possibilidades e opiniões. É o ser isso podendo ser aquilo. É, pois, a medida dos “olhos” e dos valores de cada um. No entanto, devemos ter cuidado para não aproximar a retórica, indevidamente, ao relativismo, pensamento este que a mesma não se propõe a defender. A retórica não é nem relativista, nem etnocêntrica, não é universalista, nem fundamentalista, a retórica pode ser qualquer coisa, desde que se constitua em teses devidamente aceitas pelas partes acordadas. A tekhné rhetoriké é a arte mais justa das artes, porque ela apregoa o que é verdadeiro para as partes que se acordam entre si. É verdadeiro aquilo que se concorda que é. Não basta ser verdade ao orador, precisa ser também, e, sobretudo, ao auditório. A plausibilidade das teses é o que torna a retórica tão especial, pois, regressando ao caso dos enunciados citados inicialmente, a possibilidade de a moça “ser bonita” ou de “ser não tão bonita”, dá a chance de ela ser ao menos bonita para alguns. Por certo que um terceiro enunciado derivaria dessa situação, a saber: C- A moça não é bonita- e que, apesar de ser algo supostamente doloroso de ouvir (em se tratando da moça), é algo perfeitamente aceitável por parte de quem julga. Isso evoca um importante conceito da retórica, o de kairós, segundo Górgias, o tempo e o momento oportuno para algo, a conveniência, tal como o decorum ciceroniano, pois julgamos de acordo com certas restrições situacionais, que regem a harmonia das relações e a sua verossimilhança. Dessa forma, podemos dizer que o ser retórico é sincrônico e diacrônico ao mesmo tempo, pois tanto julga e delibera no “hoje” situado, mas também vê o seu pensamento ser influenciado por toda uma constituição histórico-social do pensamento humano. A retórica é, portanto, alinear e linear, simultaneamente. Ademais, toda essa argumentação feita pode causar no auditório-leitor o efeito persuasivo pretendido por mim orador-escritor, mas pode também não causar nenhum efeito, ou mesmo o efeito reverso, pura e simplesmente pelo fato de o auditório-leitor não se identificar com o meu exemplo baseado na história da gênese bíblica (o livro bíblico de gênesis), ou por não concordar com a disposição ou com a validade dos meus argumentos. Em razão disso, constatamos: o acordo é algo da ordem da identificação. Ele vai ser efetivado se houver identificação entre o orador e o auditório, e se a premissa inicial do orador argumentante for aceita por ele.
A vida é feita de premissas, não silogísticas, mas entimemáticas. Precisamos sempre julgar e “rejulgar” os nossos pensamentos, os nossos acordos, as nossas sólidas convicções. Nem sempre essas premissas que sustentam nossa filosofia de vida são verdadeiramente razoáveis. Muitas vezes são falaciosas, ou espécies de paralogismos. Eis o desafio: entender a natureza da arte, ou das artes retóricas, sem leva-la como ré por afrontamento à verdade. A retórica é, ou pode ser, em si, a própria verdade. Uma verdade criativa, que não se abstém a cadeias lógicas do pensamento. Aliás, o próprio Deus, que no princípio era o Verbo (logos), foi movido pela retórica, pois criaria, a partir dali, o verdadeiro discurso da vida, este mesmo questionado por tantos outros no decorrer das civilizações.  Sim, exalamos essa retórica no cotidiano, em convencer os amigos a sair, em preparar uma surpresa para a namorada, em construir um casamento, em criar filhos, em se relacionar no trabalho e com a sociedade. Sim, somos retóricos. O ser humano quando deixa de ser retórico, morre. Morre por não conseguir mais questionar a vida. Não conseguirá mais questionar aos outros, nem a si próprio, não questionará o porquê de suas atitudes, o porquê de suas escolhas, de suas ideias, de seus relacionamentos. O homem que não é retórico tende ao fracasso intelectual. Seria ele, novamente, classificado como da mesma ordem de qualquer outro animal da terra. Seria a personificação da violência, ou mesmo a animalização da civilidade. Seria a ditadura dos macacos. Questiono-me sobre o que nos separa dos animais. Convencionou-se de que é a racionalidade, reivindico que seja, sobretudo, a retórica. 




[1] HANSEN, João Adolfo. Instituição Retórica, técnica retórica, discurso. Revista matraga, Rio de Janeiro,v.20,n.33, 35p, jul/dez, 20013. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga33/arqs/matraga33a01.pdf> Acesso em: 25/05/2014
[2] Nesse caso, quando pensamos sozinhos sobre algo, e deliberamos sobre isso, criamos um interlocutor para nós mesmos. O dialogismo, nesse sentido, é inerente à linguagem. Dessa forma, a retórica é sustentada pelo princípio de alteridade, pois sempre pressupõe o outro na interação.
[3] MEYER, Michel. La problématologie. Puf: Paris, 2010.
[4] A “queda” aqui se refere à doutrina judaico-cristã que entende que o homem tenha “caído” após o pecado adâmico, destituído dos benefícios que obtinha no jardim do Éden. Existem diversas correntes do cristianismo que problematizam a questão da queda, o que torna o próprio acontecimento como algo também retórico (no verdadeiro conceito do termo).  


Existem coisas que são posteriores e outras que são simultâneas.  Geralmente, o que é simultâneo nos atrai mais a atenção, assim como os prazeres, majoritariamente da ordem do imediato. O que queremos de fato é sentir, como numa ânsia pela resolução do desejo. Não só por desejar sentir, mas também pelo ter, algo falsamente acabado, sendo menos uma questão de buscar o melhor de si próprio, do que apenas alimentar paixões temporárias. Sim, temporárias! Pois o que não é sólido não se perpetua no tempo.  Mas o ser humano é tendencioso para as coisas simultâneas, não que eu veja em todas elas o mal completo (algumas são dignas, como o próprio cuidar da saúde que é simultâneo à vida, tal como nos afirmou Aristóteles na Retórica), e sim percebo que faz parte da constituição da nossa natureza. Somos breves! Somos breves e muitas vezes levianos, pois sempre fundamentamos nossas decisões em paixões, em intuições, ou em qualquer coisa da ordem do puramente sensível. No entanto, existe algo da ordem do posterior, a saber, do que se solidifica aos poucos, paulatinamente. O conhecimento é algo dessa ordem, pois, como posterior à aprendizagem, necessita de tempo para se corporificar. O que me parece bastante razoável, pois a vida é tão corrida que, às vezes, afirmamos coisas “desconhecidas” por falta de paciência intelectual. Eu mesmo, no que diz respeito a isso, já muito fiz, “esbaforido” para poder dizer que sabia algo. Tenho aprendido a esperar mais, pois o conhecimento é como o fruto que amadurece com o passar das manhãs, que apesar das incoerências do tempo- entre chuvas, temporais e dias fervorosos de sol- resiste e se fortalece. 
       Conhecimento dói, mas nasce. A natureza clama pela fadiga, e que assim desistamos de persegui-lo. Mas eu insistirei, e quero eu que todos vocês, que eventualmente vierem a ler este comentário, também o façam. Não escrevo isso aqui aleatoriamente, tenho sentido certa preguiça nas pessoas quando o ponto em questão é pensar o mundo. Mas quando não pensamos nós mesmos, outros pensarão por nós, e corremos o risco de que essas pessoas não pensem direito. O mundo é deliberativo, sempre depois das discussões urgem as ações, e estas estão cada vez mais desesperadas. Enfim, sem mais delongas, busquemos o conhecimento, aventuremo-nos pelos caminhos da aprendizagem, e que nos tornemos, assim, opinadores em bom tempo, sem pressa, pacientes, e avessos a qualquer imediatismo.